Abordagem psicanalítica no contexto da violência contra mulher durante a pandemia.



A mente humana e seus processos psíquicos, são enigmas longe de serem desvendados por completo pela ciência. E a necessidade de compreensão das demandas psíquicas, tem sido cada vez mais urgente diante do cenário atual ao qual estamos atravessando.  Segundo a OMS o sofrimento mental poderá ser a nova pandemia pós COVID-19 e a ONU já alerta que os serviços de saúde da mente devem ser parte essencial de respostas ao enfrentamento do novo coronavírus.

Compreender os mecanismos, a topografia e o funcionamento da psique é o propósito da abordagem psicanalítica; Refletir sobre o processamento, estrutura e a relação biopsicossocial do sujeito na dinâmica do adoecimento mental, principalmente entre mulheres, é essencial na terapia analítica. Fatores estes, que podem permear questões de ordem genética, bem como o contexto socioambiental e a dinâmica das relações objetais do indivíduo.

A psicanálise, pesquisa e analisa, essa dinâmica subjetiva, como também sua manifestação de descarga de traços mnêmicos do inconsciente, que é expurgada através de sintomas comportamentais, psicossomáticos e/ou patologias clínicas.

Em sua primeira tópica, Sigmund Freud compartimentou o aparelho psíquico humano em três espaços com funções distintas: Consciente = Responsável por nossas memórias acessíveis, traços mnêmicos com  maior valor afetivo e /ou importantes a nossa sobrevivência; Pré- Consciente = Lembranças que podem ser acessadas, porém não foram “reguladas” como  essenciais e/ou foram substituídas por informações mais relevantes em nossa psique e/ou trouxeram alguma experiência de dor ou angústia e  não foram repelidas através dos mecanismos de defesa como o recalque;  Inconsciente = Todo o material recebido através de estímulos ( sensoriais, percepções, sentimentos) que não foram bem assimilados, processados ou perderam seu valor afetivo ou mesmo experiências traumáticas que foram bloqueadas pelos mecanismos de defesa.

Os mecanismos de defesa (como recalque, sublimação, negação, projeção que são regidos pelo princípio da censura), atuam como “reguladores” de pulsões do inconsciente para o Ego impedindo  ou “mascarando” nossos desejos e impulsos.

Esses materiais convergidos em traços mnêmicos não se perdem, transitam dentro de nosso aparelho mental; quando há alguma falha nesse mecanismo de defesa, os estímulos convergidos podem estabelecer desordens psíquicas (neuroses), que culminam em sintomas como dor e angústia e doenças psicossomáticas.

Desemprego, instabilidade política e econômica, processos não experienciados de luto, a perda em si, a ausência de controle, a questão da finitude, o isolamento de contato físico, o distanciamento dos laços sociais e afetivos são elementos que nos trazem a um embate com nosso medo mais primitivo: o desamparo, e isso pode impactar gravemente no constructo psíquico  do sujeito.

Entretanto, as mulheres tem uma problemática a mais, que as expõem ao risco de sofrimento mental com consequências devastadoras: a questão da violência doméstica. Essa é uma questão urgente de saúde e segurança pública.

Nesse período de pandemia, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Decode Pulse identificou um acréscimo de 431% dos relatos de briga de casais no período de isolamento. Entre 52.513 menções a relatos de brigas conjugais no Twitter, 5.583 indicavam ocorrência de violência contra mulheres  cujo isolamento social impõe maior convivência com o agressor, aumentaram significativamente os índices de violência contra mulher nos lares brasileiros, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos constatou alta de quase 9% nas denúncias realizadas no Disque 180, destinado a denúncias de violência doméstica. A Justiça Estadual do Rio de Janeiro divulgou que foram registrados 50% mais casos de violência doméstica a partir do momento em que o confinamento passou a ser adotado.

Mulheres expostas a situações de violência seja ela de ordem psicológica, física ou sexual, bem como momentos de extremo estresse como nos casos de violência doméstica e urbana, são mais suscetíveis a ter sua saúde mental comprometida devido ao excesso de desprazer ao qual são submetidas.

No texto “Além do princípio do prazer” Freud fala um pouco sobre alguns fenômenos psíquicos após uma situação dolorosa ou angustiante "A ‘ansiedade’ descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática; nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim, contra as neuroses de susto.”

Falhas nos mecanismos de defesa dessa mulher, a impulsionam a um estado de repetição de padrões de pensamentos e atitudes que culminam em ação, indo contra o princípio do prazer, como bem escreveu Freud em seu livro: “Além do princípio do prazer.” Que na prática, faz com que essa vítima perpetue algum ciclo de violência sem perceber, seja através de um histórico de vários relacionamentos abusivos ou aceitando certas situações por ter sua auto estima comprometida, fazendo com que se ache “merecedora” de tal tratamento. Nesses casos a terapia analítica auxilia essa paciente a ressignificar esses padrões, reorganizando os afetos, reaprendendo a lidar com suas questões, sem dor e angústia, na psicanálise chamamos de cura pela análise.

"Tudo compreender não é tudo perdoar. A psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado." (Freud) 

A psicanálise nos auxilia na libertação das amarras psíquicas que se traduzem em repetições e patologias. Através da associação livre de palavras, o analista utiliza a técnica de escuta flutuante e acessa conteúdos mnêmicos (lembranças) do analisando, que uma vez recalcados e mal processados, retornam ao pré consciente como mal estar. Compreender as origens é romper ciclos...



Escutar, acolher de maneira empática, sem pré julgamentos e “achismos”, assegurando a liberdade desse paciente em desnudar suas questões sem interferências é o que faz a abordagem psicanalítica ser em ferramenta tão interessante no contexto terapêutico à mulheres vítimas de violência.

Denunciem! Disque 188, procurem as DEAMs e as redes de apoio, além do acompanhamento terapêutico é importante que o agressor seja afastado da vítima, a fim de protegermos essa mulher e evitarmos o feminicídio. 




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