Quando o desejo do EU não inclui a vida – Considerações psicanalíticas sobre a melancolia e o suicídio.

 


Para Sigmund Freud (Teoria das pulsões), o homem é orientado a priori por duas pulsões: a de vida (Eros) e a de morte (Tânato). Essas pulsões precisam estar em equilíbrio para assegurarmos o bom funcionamento mental, estabelecendo sinergia entre o psíquico, o anímico e o corpo. Para o percursor da psicanálise, somos seres holísticos e o desequilíbrio entre essas pulsões pode acarretar uma série de sintomas físicos e disfuncionalidades mentais, originando as neuroses, patologias psicossomáticas e transtornos mentais - dentre eles a depressão.

A pulsão de vida nos leva ao movimento, remete ao prazer e energia libidinal; enquanto a pulsão de morte: à inércia, desconexão, desligamento - não necessariamente ao ato de morrer em si - , uma vez que essa experiência ( morte) não é percebida mais de uma vez pelo nosso aparelho psíquico , para que se torne traço mnêmico em nosso inconsciente.

A história de evolução humana aponta nossa espécie como de natureza dominante, onde o instinto de sobrevivência traz uma certa resistência e adaptabilidade às mais variadas interpéries e adversidades. Darwin em sua teoria da evolução (1859) apresenta uma dos conceitos mais emblemáticos do século XIX; a da seleção natural, onde as espécies que sobrevivem não são as mais fortes, nem as mais inteligentes, e sim aquelas que se adaptam melhor às mudanças. Esse conceito se tornou predominante para a não extinção do homo sapien, segundo alguns teóricos.                        

Entretanto, o homem ainda não conseguiu adaptar se de maneira saudável a compadecimentos anímicos, angústias de ser e/ou dores do existir.

Segundo a OMS, a depressão será a maior causa de afastamento do trabalho, superando o número dos acidentes dessa natureza. Atualmente cerca de 300 milhões de pessoas no mundo sofrem com transtornos mentais; 1% da população mundial é esquizofrênica, sem contar outros casos não diagnosticados ou de diagnóstico não adequado.

O sofrimento é necessário para nosso desenvolvimento e amadurecimento psíquico ( é um sinal que nossos mecanismos de defesa estão funcionando), compreender nossa vulnerabilidade e finitude é um grande desafio a toda civilização; a ruptura de entre o simbólico, imaginário e o real pode nos trazer uma grande angústia e sofrimento, pois nosso significante, alimentado pelo nosso imaginário é confrontado com o significante do outro , trazendo à tona o conflito das relações objetais; o simbólico é visto de maneira subjetiva e passível de múltiplas interpretações. O real é a plenitude dessas variáveis.

Precisamos dialogar sobre o adoecimento psicológico e desmistificar tabus acerca das dores do existir, o sofrimento humano e por fim, o autoextermínio.

Lacan (1959) defende que a fonte de todos os desejos do ser humano é o desejo de ser desejado sempre. E o que fazer quando esse desejo de SER desejado não é percebido ou experimentado pelo indivíduo ( pelo menos de maneira não consciente)?

Segundo a abordagem psicanalítica, a melancolia é um estado de profunda tristeza, apatia e ausência da capacidade de amar; tendo relação direta com o ambiente vivencial do sujeito.

“O melancólico ainda nos apresenta uma coisa que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima, um empobrecimento do EU. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia é o próprio EU.”

(Freud – Luto e melancolia)

A depressão pode ser vista como uma ausência de existir como sujeito, a não percepção de um significante-simbólico existencial, uma dor sem nome; quimicamente potencializado por uma disfuncionalidade no sistema límbico (localizado no lobo temporal anterior) cuja redução na produção e atividade normal de neurotransmissores como a serotonina, responsáveis pela nossa sensação de bem estar se estabelece.


Foto das partes do cérebro. Disponível em:
http://ggte.unicamp.br/e-unicamp/public/?detail&repo=imagens&itemId=547

Quando o aparelho psíquico não está fortalecido, especialmente o Ego, uma forte energia pulsional de morte (desligamento) pode romper o mecanismo de defesa (trauma) responsável pelo instinto de autopreservação do sujeito (vida) e essa forte catexia pode transformar se em uma apresentação inconsciente alimentada por nossas representações afetivas e ideativas da morte, originando o desejo por morrer, ou seja, o suicídio.

Indivíduos com transtornos mentais (como esquizofrenia), de personalidade ( boderline, Antissocial) ou de Humor (Distimia, depressão) estão mais suscetíveis a cometer suicídio. Segundo a OMS, cerca de 90% dos casos de autoextermínio poderiam ser evitados; pois se tratam de desdobramentos  de patologias de ordem metal diagnosticáveis e tratáveis. Estudiosos em suicidologia ligam o ato, a um impulso endógeno, que manifesta indícios sintomáticos comportamentais e psicológicos sumários.



Segundo o documento Preventing suicide – a global imperative: “O comportamento suicida é um fenômeno complexo causado por vários fatores inter-relacionados: pessoais, sociais, psicológicos, culturais, biológicos e ambientais.” E é um caso de saúde pública.

Vivemos num contexto de violência urbana e nas relações, estamos expostos a situações extremas e conflitos sistêmicos graves, logo, os profissionais de saúde mental precisam estar atentos e com uma escuta empática e sensível a esses episódios traumáticos, que podem culminar em tentativas ou consumação de suicídio.

Os homens entre 15 a 45 anos e após os 75 anos estão na faixa etária com a maior incidência de suicídios, contabiliza se um aumento significativo entre o povo indígena nos estados do MS e AM, entretanto as mulheres são as que mais realizam tentativas de autoextermínio, estima se que para cada ato consumado ouve pelo menos outras 6 tentativas.

Destaco algumas formas de violência contra a mulher que podem contribuir para o agravamento de transtornos de ordem psicológica, principalmente a depressão que é considerada um dos principais fatores de risco para muitos estudiosos em suicidologia:

Violência física – Agressões e ordem física como: empurrões, chutes, socos, pontapés, mordidas, simulações de enforcamento, etc;

Violência Psicológica – Agressões contra a subjetividade emocional como: ameaças, humilhações, desvalorização, deboches, apelidos, comparações, etc;

Violência patrimonial – Controle e submissão de todos os ganhos materiais e bens, posse de documentos, cartões, senhas bancárias, imóveis, etc.

No caso dos homens: Perdas materiais, desemprego, solidão, doenças crônicas e graves, uso e abuso de drogas lícitas e/ou  ilícitas estão entre os principais motivos de distúrbios de ordem mental

O sujeito que atenta contra a própria vida está em um profundo estado de dor, desamparo e desesperança; na verdade suicídio é uma espécie grito de socorro; é fuga e um processo de luto do ato de viver. Um rompimento do desejo de SER. Essa ideação de morte como fonte de alívio, liberdade ou solução para as dores anímicas precisa ser observada e analisada com um olhar muito atento e com ausência de julgamento.

Precisamos observar alguns sinais indicativos de um comportamento suicida, oferecer orientação à família, a fim de compor a tríade terapêutica do paciente: Rede de apoio + tratamento terapêutico + posologia adequada nos casos de depressão e Apoio multidisciplinar + supervisão constante + suporte a família do paciente em casos de tentativa de suicídio.

Dentre esses sinais podemos destacar:

1. Comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com a família e amigos, pouca interação social;

2. Transtorno psiquiátrico;

3. Alcoolismo;

4. Episódios de ansiedade ou pânico;

5. Mudança na personalidade, irritabilidade, pessimismo, depressão ou apatia constantes;

6. Mudanças no hábito alimentar e de sono;

7. Tentativa anterior de suicídio ;

8. Odiar-se, sentimento de culpa, se sentir sem valor ou que está sendo um peso para as pessoas;

9. Uma perda recente importante – morte, divórcio, separação, emprego;

10. Histórico familiar de suicídio;

11. Desejo súbito de concluir afazeres pessoais, organizar documentos, etc.;

12. Sentimentos de solidão, impotência, desesperança;

13. Mensagens com tom de despedida;

14. Doença física crônica, limitante ou dolorosa;

15. Menção repetida de morte, suicídio ou desejo de "sumir".

Em casos de tentativa de suicídio, deve se socorrer a vítima o mais rápido possível, caso consiga identificar o método e os recursos usados, deve ser comunicado aos serviços de saúde. Caso não existam recursos para socorrer, ligue imediatamente ao SAMU (192).

Existem centros especializados em emergências psiquiátricas em todo o país, como o Hospital Psiquiátrico Felipe Pinel no RJ; Hospital de Jurujuba em Niterói; Hospital Psiquiátrico Pinel em SP, ou da H.P. Água Funda em SP; Entretanto após a reforma psiquiátrica, o SAMU (192) e os demais serviços de emergência estão preparados para essas demandas.  Já a RAPS (Rede de Atenção psicossocial) e o CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) estão à disposição para atendimentos de acompanhamento clínico em diversos municípios brasileiros.

O CVV – Centro de valorização a Vida (188) que presta um serviço de escuta e ações de prevenção ao suicídio, atendendo pessoas com comportamento ou  ideação suicida em todo o Brasil. Os canais de acesso podem ser  por telefone (ligação gratuita), presencialmente ou via chat.



Fonte site cvv.org. disponível em: https://www.cvv.org.br/blog/fe-no-semear/

Referências:

Freud, Sigmund (1920 -1922). Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Ed. Imago. Rio de Janeiro.

Coser, Orlando (2003). Depressão: clínica, crítica e ética. Ed. Fiocruz. Rio de Janeiro. Disponível em: https://doi.org/10.7476/9788575412558

Trigueiro, André (2019). Viver é a melhor opção: a prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. 6ª edição. Ed Correio Fraterno. São Paulo.

 

 

 

 

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